Exército esconde Enxada de Ouro, um símbolo na Ditadura

Lembro-me de que o telefonema ocorreu em dezembro de 2003, quando eu estava no Rio de Janeiro concorrendo na final do Prêmio Esso de Jornalismo com a reportagem intitulada “A Máfia dos Fiscais”, escrita em parceria com a jornalista Sônia Filgueiras para a revista “IstoÉ”.

Do outro lado da linha, uma senhora que, pela voz, aparentava ter uns 60 anos, se identificou.

— Muri — é assim que os amigos de infância e a família me chamam. — Aqui é a tia Agatha.

O apelido, em referência à grande escritora britânica de romances policiais Agatha Christie (1890–1976), ela mesmo se deu devido aos seus dotes investigativos.

— Tia o quê? — respondi com uma pergunta.

Depois que ela se identificou pelo seu nome real, tomei um susto:

— Mas a senhora não tinha morrido?

— Essa é a história que mandei a família espalhar. Na verdade, eu me autoexilei.

Detalhou que esteve sob a mira da repressão ainda antes do Golpe Militar de 1964 por ter participado da Revolta de Porecatu – um movimento de camponeses na luta pela terra na década de 40 com o apoio do Partido Comunista Brasileiro no Norte do Paraná. Essa revolta, aliás, poucos sabem ou lembram, mas teve a participação do jornalista esportivo e treinador de futebol João Saldanha (1917-1990). Mas essa é outra história. A tia Agatha foi direto ao assunto da sua ligação.

— Murizinho, você precisa descobrir onde está a ‘Enxada de Ouro’.

Eu nunca tinha ouvido falar do assunto. A tia Agatha me explicou que a enxada fora doada em 1964 pelo empresário José Garcia Molina, dono da Viação Garcia, ao governo do golpista, ditador e general de Exército Castelo Branco (1897-1967), em contribuição à campanha “Ouro Para o Bem do Brasil”. Tal campanha foi lançada poucos dias depois do Golpe de 1964 por empresários conservadores e tinha a risível meta de arrecadar doações, junto à população brasileira, para acabar com a dívida externa do país. Evidentemente, a campanha nunca quitou a dívida.

Eu decidi investigar a dica da tia Agatha. Em Londrina, no Paraná, localizei um sobrinho e filho de um sócio de Garcia que, sob a condição de não ter seu nome revelado, me deu detalhes sobre a tal enxada: assegurou que ela pesava 2.144 gramas de ouro 14 quilates (ou seja, que tem 58,5% de pureza). Hoje, o grama do ouro 14k é cotado em torno de R$ 202, o que daria à enxada hoje um valor de aproximadamente R$ 433 mil. Uma bela fortuna.

O integrante da família Garcia me contou ainda que, a exemplo do que ocorreu no Rio de Janeiro e em São Paulo, em Londrina também houve manifestações de apoio aos militares antes e depois do Golpe. O mais famoso desses eventos foi uma “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” contra o que os grupos conservadores chamavam de “ameaça de implantação de uma ditadura comunista no país”. As passeatas ocorreram em todo o país, principalmente depois do discurso do presidente João Goulart (1919–1976) de 15 de março de 1964, quando defendeu, entre as ações de governo, um projeto de Reforma Agrária no país.

O sobrinho do Garcia lembrou ainda que, em Londrina, o movimento também contava com o apoio de setores conservadores da Igreja Católica. Divertiu-se ao contar uma história de um dos apoiadores, um bispo amigo de seu tio, cujo nome também não quis revelar.

— Ao ser diagnosticado com gonorreia por um tradicional médico da cidade, o bispo disse haver contraído a doença ao tomar uma Coca-Cola. Sarcástico, o médico lhe respondeu de prontidão: “Da próxima vez, põe uma camisinha na garrafa”.

Continuei minha busca pela “Enxada de Ouro”. Acionei fontes do Exército e até parentes do ex-ditador Castelo Branco. Enfim, descobri que a enxada se encontrava no Museu Histórico do Exército e do Forte de Copacabana, localizado na Avenida Atlântica, no Rio de Janeiro. Eu nunca pude ver a enxada porque, segundo os funcionários do museu, o objeto se encontrava em uma sala reservada e não estava exposto à visitação.

O museu está localizado a poucos metros do Hotel Sofitel, palco do Prêmio Esso, justamente onde eu estava hospedado quando a tia Agatha me telefonou semanas antes. Pensei comigo mesmo: seria tia Agatha, entre suas tantas virtudes, uma visionária?

Ao conhecer gradualmente suas histórias, que começam a ser reveladas hoje neste espaço, o leitor certamente chegará à conclusão de que, em se tratando da tia Agatha, não se pode duvidar de nada. Até hoje não sei o motivo (ou não consigo me lembrar) pelo qual nunca revelei, em uma reportagem, o destino da ‘Enxada de Ouro’. O assunto somente agora me veio à mente ao ver pelo noticiário a passeata, promovida por empresários no mês passado, de apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro, que tentou dar um golpe de Estado. Esse movimento de lunáticos da elite brasileira mostra que, passados 60 anos do Golpe de Estado, o país e Londrina, cidade na qual Bolsonaro obteve quase 73% dos votos nas últimas eleições, em nada mudaram. A ‘Enxada de Ouro’ de hoje é o dinheiro que parte da elite brasileira usou para financiar a tentativa de golpe de Bolsonaro.

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