Quem tem medo do Housing First? Um método utilizado para devolver autonomia aos moradores em situação de rua
Moradia é apontada como primeiro passo para devolver autonomia
Um psicólogo norte-americano, Sam Tsamberis, constatando essas e outras obviedades criou uma tecnologia social denominada Housing First (Moradia Primeiro). Partindo da premissa fundamental que a moradia é a base que proporciona a aquisição de todos os demais direitos, colocou a pirâmide de pé novamente, e estabeleceu a moradia como o primeiro direito a ser conquistado.
Pode alguém trabalhar sem endereço? Como pode alguém cuidar da própria saúde dormindo no cimento frio das calçadas? Como pode alguém estudar, tendo as marquises como lousa?
Estabelecida a primazia da moradia na escala de direitos, passa-se à fixação da pessoa na residência. Para isso, é fundamental a participação da pessoa na escolha da moradia e sua localização. A manutenção do assistido na residência, dando cumprimento ao Art. 6º de nossa Constituição Federal, é o objetivo principal e é também o referencial máximo para a medição de sucesso na implantação de um programa de Housing First. E os números dos programas de Housing First pelo mundo são animadores: 85% a 87% dos integrados aos programas permanecem na moradia após 1 ano.
Outra premissa fundadora da tecnologia Housing First é a individualização da assistência. Cada indivíduo é único e é o único condutor de sua vida. Todas a decisões são tomadas por ele. O trabalho de assistência se limita a auxiliá-lo e orientá-lo para que as suas decisões tenham mais chance de acerto.
Para além da retomada de condições financeiras mínimas, o reestabelecimento da cidadania pressupõe a recuperação de uma série de sentimentos, comportamentos e habilidades pessoais que a vida nas ruas obliterou. Dentre eles, a autoestima talvez seja a que ressalta como capaz de organizar a retomada de todas as outras. Sendo assim, o trabalho de assistência visará sempre a elevação da autoestima pessoal, por longo tempo espancada pelos meandros burocráticos e a maledicência pública.
O reestabelecimento da cidadania de pessoas vulneráveis incomoda muito porque retira as pessoas do jugo de grupos e organizações que vêm nesta população uma clientela que motiva e viabiliza toda uma estrutura de arrecadação de verbas públicas e privadas, que de outra forma não se viabilizaria. À clientela estabelecida não se concede o prêmio da autonomia.
A pobreza é um bom negócio para muita gente e esse talvez seja o principal motivo que leva 13 mil pessoas às ruas de Belo Horizonte.
Respondendo enfim à pergunta título, quem tem medo do Housing First? São aqueles que têm medo de que a aplicação dessa tecnologia social em nossa cidade ponha fim ao escárnio de se utilizar a miséria como forma de obtenção de proventos e de visibilidade social.
Porque, não se iluda, é perfeitamente possível e viável BH sem nenhuma pessoa nas ruas. Precisamos de informação e de vontade política para fazê-lo.
Noel
Noel viveu na rua durante 25 anos. Desde muito cedo ele experimentou o sentimento de rejeição e egoísmo que infelizmente ainda estão presentes no panteão dos nossos sentimentos humanos. Entregue, aos 7 meses de vida, pela mãe à madrasta (o pai tinha três “esposas”) e daí para as ruas, com internações na Febem se intercalando durante a conturbada infância. Noel nos conta que o pai tinha medo de que ele se tornasse bandido.
Caso raro nas ruas, e porque não, na nossa sociedade, ele nunca se drogou e sempre encarou a vida de cara limpa, por mais dura que ela pudesse ser. Assim que as lojas fechavam, e a noite caía na cidade, Noel esticava o seu papelão (mais recentemente a sua barraca) e dormia, sempre acompanhado de pessoas que ele confiava e sempre evitando as pessoas desconhecidas que povoam as ruas da cidade. Essa era a sua maneira de se proteger da violência. De manhã cedo, recolhia seus pertencentes e os guardava em algum bueiro da região e começava o seu dia. Essa era a sua maneira de evitar que a prefeitura recolhesse os seus pertences.
Café da manhã no restaurante popular, ou doado por alguém. Segundo ele, comida não falta nas ruas da cidade: há sempre pessoas dispostas a doar um prato de comida, um lanche ou qualquer coisa que alivie a fome. Catava latinha nas ruas para ter algum dinheiro, para algum “luxo” eventual como um salgado ou um suco. Preenchia o dia muitas vezes na biblioteca do Sesc em Santa Efigênia ou assistindo um filme no cine Humberto Mauro.
Um dos fatores de desumanização das pessoas em situação de rua é a completa falta de privacidade e de condições sanitárias mínimas, inclusive para a realização das necessidades fisiológicas. Noel tem muitas histórias constrangedoras sobre o tema.
Alguns problemas de saúde impedem que ele tenha capacidade laborativa plena, mas percebe-se o capricho que ele tem com a nova casa, na organização e limpeza da sua humilde kitinete no bairro Caiçaras. Há dois anos engajado pelo Aluguel Solidário, um coletivo que providencia casa para as pessoas em situação de rua e delas cuida até que consigam recuperar a autonomia de suas vidas, ele busca a sua autonomia financeira, quer trabalhar.
Questionado se, em algum momento, ele foi feliz nas ruas, se em alguma esquina dessa longa trajetória ele se encontrou com um flash que fosse de felicidade e ele respondeu que se felicidade houve foi apenas no fato de saber que a gente se acostuma com tudo e que quando tudo der errado, ainda será possível viver nas calçadas da cidade.
Parabéns por ter como meta está proposta.
Que ela seja engajada com muito sucesso, adquirindo pessoas com sentimentos humanos pra fazer acontecer.
Toda caridade volta em dobro para quem o faz.